MEMÓRIA, CULTURA E PODER NA SOCIEDADE DO ESQUECIMENTO: O EXEMPLO DO CENTRO DE
MEMÓRIA DA UNICAMP.
Olga Rodrigues de Moraes VON SIMSON
Faculdade de Educação e
Centro de Memória da UNICAMP
Memória é a capacidade humana de reter
fatos e experiências do passado e retransmití-los às novas gerações através de
diferentes suportes empíricos (voz, música, imagem, textos, etc.).
Existe uma memória individual que
é aquela guardada por um indivíduo e se refere as suas próprias vivências e
experiências, mas que contém também aspectos da memória do grupo social onde ele se
formou, isto é, onde esse indivíduo foi socializado.
Há também aquilo que denominamos de memória
coletiva que é aquela formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes e que são
guardados como memória oficial da sociedade mais ampla. Ela geralmente se expressa
naquilo que chamamos de lugares da memória que são os monumentos, hinos oficiais,
quadros e obras literárias e artísticas que expressam a versão consolidada de um
passado coletivo de uma dada sociedade.
Como contrapartida, ou outro lado da
moeda, existem as memórias subterrâneas ou marginais que correspondem a versões
sobre o passado dos grupos dominados de uma dada sociedade. Estas memórias geralmente
não estão monumentalizadas e nem gravadas em suportes concretos como textos, obras de
arte e só se expressam quando conflitos sociais as evocam ou quando os pesquisadores que
se utilizam do método biográfico ou da história oral criam as condições para que
elas emerjam e possam então ser registradas, analisadas e passem então a fazer parte da
memória coletiva de uma dada sociedade. Elas geralmente se encontram muito bem guardadas
no âmago de famílias ou grupos sociais dominados nos quais são cuidadosamente passados
de geração a geração.
Na sociedade ocidental atual, o rítmo
acelerado do trabalho urbano somado a facilidade e rapidez dos meios de
comunicação (criadas pelos constantes avanços tecnológicos) colocam o homem comum
frente a uma quantidade avassaladora de informações. Tais fatos criam para o homem
contemporâneo quase a obrigação de consumir a informação de forma acrítica,
sem maior cuidado seletivo, perdendo-se portanto uma das mais importantes funções
da memória humana a capacidade seletiva que é o PODER de escolher aquilo
que deve ser preservado, como lembrança importante e aqueles fatos e vivências que podem
e devem ser descartados. A perda do exercício desse poder de seleção nas
sociedades atuais constitui o fator fundamental para a formação do que os profissionais
da informação chamam de sociedades do esquecimento(1).
É verdade, nós não nos lembramos de
tudo o que aconteceu ou que nos foi ensinado ao longo de nossa vida. Descartamos a maioria
das experiências vivenciadas e só retemos aquelas que possuem significado, isto é, são
funcionais para nossa existência futura. Yuri Lotman (2), um semiólogo
falecido na segunda metade dos anos 90 que viveu atrás da Cortina de Ferro (tendo porisso
suas obras pouco conhecidas entre nós), já dizia que cultura é memória, pois é
a cultura de uma sociedade que fornece os filtros através dos quais os indivíduos
que nela vivem possam exercer o seu poder de seleção realizando as escolhas que
determinam aquilo que será descartado e aquilo que precisa ser guardado ou retido pela
memória porque, sendo operacional, poderá servir como experiência válida ou
informação importante para decisões futuras.
Nas sociedades da memória, que
existiram no passado e ainda subsistem em locais isolados da África e da América do Sul,
por exemplo e nas quais o volume de informação é consideravelmente muito mais restrito,
a memória é organizada e retida pelo conjunto de seus membros, os quais se incumbem de
transmiti-la às novas gerações cabendo aos mais velhos, devido a sua maior experiência
e vivência, o importante papel social de guardiões da memória devido a sua maior
experiência e vivência. Cabe a eles a função de transmitir às novas gerações de seu
grupo social os fatos e vivências que foram retidos como fundamentais para a
sobrevivência do grupo.
Esse papel social dos idosos foi sendo
gradativamente perdido ao longo da história das sociedades ocidentais, mas muito mais
intensamente, na contemporaneidade, quando cada vez mais se diversificam e se sofisticam
os suportes para o registro e suporte da memória (esxcrita, imprensa, fotografia, vídeo,
discos, CDs, DVDs, disquetes, etc.).e o enorme volume de informações fez surgir
instituições especialmente voltadas ao trabalho de seleção, coleta, organização,
guarda e manutenção adequada e divulgação da memória de grupos sociais ou da
sociedade em geral, nessas novas sociedades do esquecimento.
Essas instituições realizam, portanto,
hoje, de forma profissional, uma tarefa social anteriormente exercida pelos idosos.
São elas os museus, arquivos, bibliotecas e centros de memória, que de alguma forma e
segundo critérios previamente estabelecidos realizam o trabalho de coletar,
tratar, recuperar, organizar e colocar à disposição da sociedade a memória de uma
região específica ou de um grupo social retida em suportes materiais diversos.
Eixos definidos de pesquisa devem
orientar esse trabalho para que ele possa ser bem realizado e sua fixação em suportes
tecnicamente escolhidos. Os eixos que orientam o trabalho variam de instituição para
instituição e representam o âmago do exercício de poder pois corresponderem aos
objetivos do grupo que a criou e dirige.
Hoje, nessa virada de século que
vivenciamos, acompanhando um movimento geral da sociedade ocidental, tem se explicitado
uma forte necessidade de lembrar. Quando a outra face da moeda dos processos de
mundialização. Quando se vive de maneira tão acelerada a ponto de sermos impedidos até
de "sentir o tempo passar", como se diz popularmente projetos envolvendo a
memória possibilitam aos participantes dos mesmos, habitar esse tempo e vivê-lo
plenamente, numa relação que pode ser criativa e transformadora. Nesses projetos os
idosos certamente tem novamente um papel social definido e importante .
Ecléa Bosi em "Memória e
Sociedade, lembrança de velhos" (3), obra precursora no Brasil dos
trabalhos científicos que incorporam como fonte de dados para a pesquisa o ato de
lembrar, já observava que a memória não é sonho, mas trabalho. Podemos
acrescentar que o ato de relembrar em conjunto, isto é, o ato de compartilhar a
memória, é um trabalho que constrói sólidas pontes de relacionamento entre os
indivíduos - porque alicerçadas numa bagagem cultural comum - e, talvez porisso,
conduza a ação. Portanto, a memória compartilhada é tanto forma de domar o tempo,
vivendo-o plenamente, como empuxo que nos leva a ação, constituindo uma estratégia
muito valiosa nestes tempos em que tudo é transformado em mercadoria, tudo possui valor
de troca. Essa memória compartilhada, enquanto desejo latente do homem
pós-moderno, que entretanto se realiza numa relação não inserida na lógica de
mercado, nos leva a construir redes de relacionamentos nas quais é possível focalizar em
conjunto aspectos do passado, envolvendo participantes de diferentes gerações de um
mesmo grupo social. Nesse processo utilizam os "óculos do presente", para
reconstruir vivências e experiências pretéritas o que nos propicia pensar em bases mais
sólidas e realistas nossas futuras ações.
Assim podemos perceber que o trabalho com
a memória (no qual os velhos tem papel fundamental) não nos aprisiona no passado, mas
nos conduz com muito maior segurança para o enfrentamento dos problemas atuais. Ao
permitir a reconstrução de aspectos desse passado recente, o trabalho com a memória
também possibilita uma transformação da consciência das pessoas nele envolvidas direta
ou indiretamente no que concerne à própria documentação histórica,
(ampliando essa noção que abarca agora os mais diversos suportes: textos, objetos,
imagens fotográficas, músicas, lugares, sabores, cheiros) compreendendo seu valor na
vida local, maneiras de recuperá-la e conservá-la. Esse mergulhar conjunto e
compartilhado no passado nos faz emergir mais conscientes quanto aos problemas
contemporâneos da vida da comunidade estudada e geralmente nos conduz naturalmente a
ações conjuntas e politicamente conscientes visando sua superação.
Mas os estudos sobre a memória, trazem
também uma outra exigência. À semelhança da área da Gerontologia, eles exigem uma
abordagem multidisciplinar. Para entendê-la o seu funcionamento é preciso valer-se de
subsídios de várias disciplinas realizando uma integração de conceitos elaborados em
diferentes áreas do conhecimento.
Assim, como vimos, a memória pode ser,
ao mesmo tempo, subjetiva ou individual (porque se refere a experiências únicas
vivenciadas ao nível do indivíduo) mas também social porque é coletiva (pois se
baseia na cultura de um agrupamento social e em códigos que são aprendidos nos processos
de socialização que se dão no âmago da sociedade. Só a Sociologia nos permite
desvendar esses aspectos da memória.
Sabemos também que ela nunca se
apresenta de maneira ordenada ou cronológica, pois funciona através de
associações livres entre as vivências e fatos do passado. Necessitamos da Psicologia
para compreender esse funcionamento da memória.
O processo de registro dos fatos
vivenciados e selecionados como importantes ainda é pouco conhecido, sendo objeto de
sérias investigações. Sabemos que ele se baseia nas sinapses (ligações
eletro-químicas) que conectam o vivido experienciado pelos sentidos com a área cerebral
onde se dará o registro. Só as ciências biológicas nos ajudam a compreender
esse aspecto.
Vimos também que antes que o registro se
processe um importantissimo filtro seletivo atuará separando o que deve se retido
daquilo que será descartado, filtro esse fornecido pelo cultura de uma dada
sociedade.
São signos da cultura, desvendados pela semiótica
que nos permitem uma primeira penetração em tal processo que encerra certamente em forte
sentido de poder .
Para entender como cultura é memória e
memória pela cultura permite exercer um poder que transcende tanto da política como
da filosofia, fechando assim a necessária multidisciplinaridade exigida pelo objeto.
As instituição-memória, realizam a
produção racional e organizada de uma memória perdida, ao invés de se
constituírem como depositários de uma memória vivida, a qual só pode existir
nos grupos sociais que apresentam intensa vivência coletiva e forte identidade cultural.
Para compensar esse caráter racional e
organizado que o trabalho com a memória das instituições-memória precisa
necessariamente apresentar, caráter esse que as impediria de captar a riqueza cultural
dos fatos sociais, pois trabalha-se com objetos que os representam, torna-se
indispensável não nos voltarmos para simples vestígios ou documentos isolados, mas
elaborarmos conjuntos documentais que nos permitam captar a intencionalidade e o
simbolismo do corpo social ao registrar seu passado.
Só dessa forma se pode contribuir para a
construção da identidade de um corpo social, pois é fornecendo a ele conjuntos
documentais racional e tecnicamente tratados e realizando uma boa divulgação desse
material que tais instituições poderão bem realizar seu papel de guardiãs da memória.
Hoje, pela utilização do método
biográfico na construção destes ricos conjuntos documentais são muitas as versões
captadas, a partir de diferentes atores sociais, o que nos permite relativizar posições,
compreender o contexto político cultural do período e nuançar com vários tons de cinza
um passado que não pode ser reconstruído somente em tons de branco e de negro.
O Centro de Memória é uma
instiutição-memória que realiza um trabalho ligado a história social de Campinas e
região, ou seja, a região que se desenvolveu no Estado de São Paulo a partir da
importância e relevância desta cidade como grande polo econômico, social e cultural
surgido no século XIX, a partir do sucesso da cultura cafeeira. O trabalho do Centro de
Memória envolve vários setores do conhecimento, como antropologia, sociologia,
história, geografia, arquitetura educação e cultura. O trabalho de pensar os objetivos
e as metodologias de pesquisa fica por conta de um grupo de professores e pesquisadores
oriundos de todas essas disciplinas que se reúnem em seminários para trocar
experiências, informações e bibliografia. Esse trabalho é complementado também por
uma coleta, tratamento e organização de documentos históricos e da história oral
levada a efeito através de técnicos e auxiliares de pesquisa envolvidos nos projetos.
Um exemplo da importância do Centro de
Memória para a reconstrução da história da sociedade campineira é o do bairro de
origem teuto-brasileira de Friburgo, situado no extremo sul do município e que existe
desde 1871. Em meio a uma reforma da escola, foi encontrado um armário, infestado por
cupins, que continha livro manuscritos em alemão gótico. O Centro de Memória foi
contatado pelos dirigentes da Associação Escolar e descobriu que se tratava de
documentação histórico-cultural muito valiosa. A partir da análise desses documentos,
da captação da história oral, ou seja, das histórias de vida dos moradores mais
antigos, e da análise de um conjunto de fotografias antigas, fornecidas pelos
entrevistados, foi possível reconstruir a memória de um grupo que poucos habitantes de
Campinas conheciam, mas que constitue o último resquício da imigração alemã do
século XIX para a região(4). Agora os moradores do bairro sabem sua origem, valorizam o
passado e contam sua história baseados na trabalho que o Centro de Memória realizou e
possuem uma identidade definida que se expressa na criação de grupos folclóricos
alemães e na realização de festas típicas reunindo a comunidade friburguense.
Para a realização deste trabalho, o
Centro de Memória conta com equipamentos de alta tecnologia que permitem a recuperação
de documentos históricos antigos danificados. Computadores, microscópios, prensas e
câmaras com temperatura e umidade controladas fazem parte dos recursos que ajudam a
contar a história de Campinas e região. Toda essa infra-estrutura foi conseguida
através do apoio de instituições de financiamento de pesquisa como a FAPESP e o CNPq.
Os profissionais técnicos do Centro de Memória são normalmente especialistas em suas
áreas, formados pela instituição. Eles trabalham com tratamento e recuperação de
imagens, de documentação histórica dos séculos XVII, XVIII e XIX e, fazem trabalhos de
paleografia (leitura dos documentos antigos), e de recuperação da memória oral e
imagética da população local.
Com apoio da sociedade, dos
pesquisadores, dos parceiros e das instituições de pesquisa, o Centro de Memória da
Unicamp vem desvendando as tramas da história da cidade e região através de um trabalho
sério baseado na metodologia científica e no compromisso de fazer com que a população,
seja ela de origem local ou migrante, crie ou restabeleça laços de pertencimento com a
cidade e se constitua numa sociedade composta por cidadãos cada vez mais politicamente
conscientes e participativos.
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